Com a proposta de construir um novo paradigma de justiça baseado em escuta, responsabilização e reparação, o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), por meio da Escola Superior da Magistratura (ESMAM), promoveu o curso Justiça Restaurativa e o Papel do Magistrado na sua Consolidação, voltado exclusivamente à magistratura maranhense.
A formação, realizada entre os dias 2 e 10 de junho, contou com aulas teóricas e práticas, tanto na modalidade EaD quanto presencial, ministradas pela juíza do TJPR Laryssa Copack Muniz, referência nacional na temática e facilitadora certificada pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS); e pela juíza do TJMA Mirella Cezar Freitas, mestranda e formadora pela ENFAM, pesquisadora em política criminal e integrante de grupos de trabalho nacionais sobre Justiça Restaurativa (JR) e políticas de atenção social.
PRÁTICAS HUMANIZADAS
O curso se insere no esforço do TJMA em consolidar práticas humanizadas, eficazes e inclusivas no sistema de justiça, alinhadas aos princípios constitucionais e às diretrizes da ENFAM e do CNJ. “Uma aposta firme na transformação — da justiça, da cultura institucional, das relações sociais. Um trabalho a ser realizado por facilitadores e facilitadoras em círculos de justiça restaurativa, como ferramenta útil à atuação de magistrados e magistradas”, disse Mirella Cézar.
Uma das elaboradoras da Resolução CNJ nº 225/2016 - que dispõe sobre a política nacional de justiça Restaurativa no âmbito dos tribunais -, Laryssa Muniz concedeu entrevista exclusiva durante sua passagem por São Luís (confira abaixo). Ela reforçou a necessidade de uma mudança de mentalidade no Judiciário e trouxe exemplos inspiradores da atuação paranaense com práticas restaurativas. Segundo a juíza paranaense, os magistrados e magistradas maranhenses “estão sendo chamados para um novo tipo de escuta e protagonismo: o da construção da paz”, reforçou.
A iniciativa vai ao encontro das ações já desenvolvidas pelo Núcleo de Justiça Restaurativa (Nejur-TJMA), contribuindo para estimular e preparar a magistratura na implantação e fortalecimento das práticas restaurativas nas comarcas do Estado.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA JR
A formação tratou ainda sobre a utilização de ferramentas de inteligência artifical (IA) aplicadas à Justiça Restaurativa, como forma de avaliação de impacto, com base em dados que indicam reincidência ou vulnerabilidade; triagem preditiva, permitindo identificar casos com maior potencial restaurativo; e monitoramento contínuo, que avalia os efeitos da prática restaurativa na ambiência institucional e na responsabilização das partes.
Mirella Cezar enfatizou que a aplicação das práticas restaurativas no sistema de justiça pode ser significativamente fortalecida com o apoio ético e estratégico da IA. "Embora a IA não substitua o encontro humano restaurativo, pode contribuir com o aprimoramento de diagnósticos, orientar encaminhamentos e monitorar impactos", explicou.
Juízas Mirella Cezar (esquerda) e Laryssa Muniz
A seguir, a íntegra da entrevista com a juíza Laryssa Angélica Copack Muniz:
ESMAM – Professora, para começar, como é que a justiça restaurativa se distingue da justiça tradicional punitiva?
Larissa Muniz - A justiça restaurativa se distingue pelas perguntas que ela faz. Quando a gente quer mudar um paradigma, o que muda são as perguntas. A justiça retributiva quer saber: que lei foi violada, quem violou e o que essa pessoa merece. O sistema criminal brasileiro é estruturado para responder a essas três perguntas — e nelas, não há espaço para a vítima. Na justiça restaurativa, as perguntas são outras: quem sofreu o dano, o que essa pessoa precisa para ficar bem e quem tem o dever de reparar. Saímos de um olhar voltado apenas ao processo para um em que a vítima se torna protagonista. Vamos atrás das necessidades dessa vítima e de quem pode reparar o que foi causado. Isso muda tudo.
ESMAM – E como a justiça restaurativa se ancora na Constituição Federal?
Larissa Muniz - Ela está no preâmbulo da Constituição, que é o cartão de visitas da nossa Carta. Lá se afirma que a República busca a solução pacífica das controvérsias. Isso já é uma grande abertura para a justiça restaurativa, porque solução pacífica envolve o Estado também — e aplicar uma lei que prende alguém é, por mais que autorizada, uma forma de violência. O artigo 5º é recheado de princípios que abraçam a justiça restaurativa: dignidade da pessoa humana, proporcionalidade da reprimenda... Então, sim, ela está absolutamente em consonância com os princípios constitucionais.
ESMAM – Então, estamos falando de um novo paradigma?
Larissa Muniz - Sim. Quem estuda paradigmas sabe: eles mudam quando mudam as perguntas. A justiça restaurativa está interessada em outras perguntas, outras respostas, outros caminhos. Isso é paradigmático.
ESMAM – Como tem sido a experiência concreta no Paraná na implementação da justiça restaurativa? Há algum caso ou iniciativa emblemática que a gente já possa compartilhar?
Larissa Muniz - Temos 11 anos de trabalho no TJPR, e os avanços são impressionantes. O interesse dos juízes é enorme. Os cursos oferecidos pela Escola Judicial se esgotam em 10 minutos! Isso mostra sede por mudança. Temos o projeto “Justiça Restaurativa Sem Fronteiras”, no qual comarcas que ainda não têm equipes próprias acionam a capital, e facilitadores são enviados para atender localmente. Já tivemos casos de conflitos resolvidos com acordos significativos — como um acidente de trânsito com um acordo de R$36 mil. A denúncia foi rejeitada, o processo extinto. Justiça foi feita, com diálogo e reparação. Outro destaque: temos um grupo de 60 juízes que participam do “Justiça Restaurativa e Literatura”. Esse grupo virou podcast, depois livro. É uma rede viva de reflexão e troca. Hoje, temos mais de 50 comarcas no Paraná que aplicam a justiça restaurativa. Isso só é possível porque há capilaridade, envolvimento real.
ESMAM – Quais têm sido os maiores desafios para consolidar essa prática dentro de um Judiciário historicamente voltado à lógica da punição?
Larissa Muniz - A cultura do punitivismo é o maior obstáculo. Ela não resolve mais — e, no fundo, a população já percebe isso. O problema é que o único modelo que conhecemos é o da punição. Queremos obediência dos filhos? Punimos. Queremos justiça? Punimos. Mas a punição, sozinha, não gera consciência — gera raiva. Precisamos deslocar o foco. A responsabilização que a justiça restaurativa propõe é outra: é provocar o autor do dano a reconhecer o efeito dos seus atos e buscar reparar. É muito mais potente e transformador. Platão já dizia que todo homem precisa saber o que seus atos causam nos outros. Isso não exige punição — exige consciência. E isso a JR provoca. Mas, sim, é ameaçador para quem só conhece a lógica do controle.
SOBRE O CURSO NO MARANHÃO
Realizado de forma semipresencial pela ESMAM, o curso “Justiça Restaurativa e o Papel do Magistrado na sua Consolidação” tem carga horária de 20 horas, sendo 16 presenciais. A proposta pedagógica privilegia a vivência prática dos círculos restaurativos, a escuta ativa e o planejamento de ações concretas para aplicação no contexto jurisdicional. A coordenação é da juíza Mirella Cezar Freitas, que também atua como docente ao lado da professora Laryssa Muniz.
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