A Escola Superior da Magistratura do Maranhão (ESMAM) abriu, nesta quinta-feira (11), a primeira rodada do Ciclo de Debates sobre a Reforma do Código Civil, com o apoio da Escola da Procuradoria-Geral do Estado e da Escola do Ministério Público. O evento reuniu nomes de destaque nacional diretamente envolvidos na elaboração do anteprojeto atualmente em tramitação no Senado Federal (PL 4/2025) . O evento aconteceu no auditório Madalena Serejo, no Fórum Desembargador Sarney Costa, encerrando-se na sexta-feira (12).
A abertura contou com a participação da diretora da ESMAM, desembargadora Sônia Amaral, que ressaltou a relevância do encontro. “Estamos trazendo pessoas que participaram da proposta do anteprojeto de reforma do Código Civil. Nosso interesse e expectativa é saber o que vem por aí, para que nós, operadores do direito, possamos nos preparar diante das mudanças que esperamos ver aprovadas”, afirmou.
Desembargadora Sônia Amaral
Também estiveram presentes o desembargador Paulo Velten Pereira (presidente do TRE-MA), a desembargadora Márcia Cristina Chaves Coelho (coordenadora do Grupo Maria Firmina, pela paridade de gênero no Judiciário), Orfileno Bezerra Neto(subprocurador-geral de justiça para Assuntos Jurídicos), a juíza Andréia Perlmutter Lago (diretora do Fórum de São Luís) e o procurador do Estado, Daniel Blume.
Primeira palestrante do ciclo, a professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da PUC/SP, doutora Rosa Maria de Andrade Nery, foi homenageada com a Medalha do Mérito Acadêmico “José Pires da Fonseca”, da ESMAM, por sua relevante contribuição aos estudos do direito no país. Foi elogiada como uma das mais qualificadas e queridas professoras da PUC-SP, com vasta experiência no Ministério Público e na magistratura, sendo considerada uma "jurista perfeita, total, integral", observou Paulo Velten.
Autora de inúmeras obras jurídicas, ela apresentou um panorama histórico e crítico do direito privado no Brasil, situando a evolução legislativa até o atual Código Civil de 2002 e destacou a defasagem histórica do Código de 1916, lembrando que o direito empresarial já havia sido modernizado em 1850, com o Código Comercial.
NOVO CÓDIGO, NÃO. NOVO SISTEMA
Ao discorrer sobre os avanços trazidos pelo sistema semiaberto do atual Código, com cláusulas gerais e conceitos indeterminados que permitem ao juiz adaptar a norma ao caso concreto, a jurista fez questão de frisar que não se trata de um código novo, mas um código com sistema novo, diferente do sistema anterior. “O juiz pode analisar a situação de fato para moldar a solução jurídica necessária”, pontuou.
Rosa Nery comentou sobre outros pontos centrais, como a complexidade contratual contemporânea, com a necessidade de diferenciar contratos civis, de consumo, empresariais e de trabalho; a criação do Livro de Direito Digital, com cerca de 400 artigos para dar conta das novas relações cibernéticas; avanços no direito de família, com reconhecimento de novas realidades sociais e proteção específica à gestante; e a proteção ao bem de morada como patrimônio impenhorável.
Ao final, a palestrante reconheceu que o código é resultado de um trabalho coletivo e disse estar aberta a críticas e sugestões: “Trabalhamos com espírito público e vontade de acertar. As críticas são bem-vindas e o Parlamento deve ser iluminado para encontrar soluções.” Ela enfatizou a importância da atualização para acompanhar as mudanças sociais, tecnológicas e econômicas. “Vivemos na idade das conexões, e o direito precisa refletir essa realidade.”
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO
A professora Maria Cristina Santiago apresentou análise sobre as mudanças propostas em temas sensíveis do direito de família e das coisas, com ênfase na proteção social e na adaptação da legislação às transformações da sociedade contemporânea.
Entre os pontos centrais, Santiago abordou sobre as alterações na usucapião familiar, que visam garantir maior proteção às mulheres chefes de família em situações de abandono do lar. Segundo a proposta, a perda da meação só poderá ocorrer quando o abandono for voluntário, sem que situações de violência doméstica sejam interpretadas como causa de penalização patrimonial.
Maria Cristina Santiago
“O requisito do abandono do lar deve ser interpretado como abandono voluntário. Imaginem vocês se uma pessoa se visse na iminência de ter que sair do lar em razão de uma violência doméstica e, por ter saído, fosse posteriormente penalizada pela perda da sua meação…”, alertou a professora.
Outro ponto de destaque foi a previsão de maior detalhamento do direito real de laje, que passa a contar com mecanismos de defesa autônoma e pode ser utilizado como garantia em operações jurídicas. A palestrante também ressaltou inovações ligadas ao mundo digital, como a possibilidade de tutela possessória de bens imateriais ou incorpóreos, entre eles heranças digitais e contas em redes sociais, cada vez mais presentes nas disputas jurídicas.
Por fim, chamou a atenção para a disciplina dos contratos de curta duração firmados por meio de aplicativos, que, de acordo com o projeto, só poderão ser autorizados mediante previsão expressa em assembleias condominiais, trazendo maior segurança jurídica às relações de vizinhança.
RESPONSABILIDADE CIVIL
O advogado e professor Misael Montenegro Filho (OAB/PE), especialista em contratos, arbitragem e direito processual, trouxe ao debate um dos temas mais sensíveis da reforma: a responsabilidade civil.
Ele destacou que, diferentemente de outros compartimentos do direito material, a responsabilidade civil no Brasil vem sendo moldada fortemente pela jurisprudência, aproximando-se de modelos do common law americano.
Misael Montenegro Filho
Comentando o artigo 927-B do projeto, Montenegro explicou que a ampliação da teoria do risco permitirá reparação de danos independentemente de culpa em atividades que, mesmo não sendo defeituosas ou essencialmente perigosas, gerem um “risco especial e diferenciado”. O jurista alertou que a expressão é subjetiva e ficará a critério da interpretação judicial.
Um dos pontos mais inovadores, e também mais polêmicos, foi a introdução da sanção pecuniária de caráter pedagógico (art. 944-A, §§3º e 4º). Segundo o texto, o juiz poderá agravar o valor da indenização em até quatro vezes em casos de dolo, culpa grave ou reiteração de condutas danosas. O professor destacou que a medida busca prevenir litígios e punir condutas empresariais recorrentes em que réus fazem o chamado “cálculo da recusa”, como em situações de negativa sistemática de planos de saúde. Parte da multa poderá ser revertida para fundos públicos ou instituições de beneficência.
DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
À tarde, o advogado e professor da PUC-PR Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk abriu o ciclo de debates abordando sobre o tema Direito das Obrigações, com foco nos contratos e nos vetores que orientam a reforma do Código Civil.
“A reforma procura aprofundar aquilo que derivou da lei da liberdade econômica, notadamente a lógica pertinente à intervenção mínima e o respeito à alocação de riscos definida pelas partes”, afirmou, destacando que o objetivo não é abrir espaço para revisão indevida dos contratos ou uma ‘consumerização’ do direito, o que para ele seria uma leitura completamente equivocada.
O jurista explicou que a reforma reforça a distinção entre função social e função econômica dos contratos. “A função social é dada pelo direito. Já a função econômica é dada pelas partes. São os contratantes que definem a função econômica, e o direito apenas a chancela”, disse, ressaltando que o projeto consolida esses princípios de forma clara e técnica.
Carlos Eduardo Ruzyk
Ao concluir, reforçou a ideia central da reforma: “A intervenção judicial continua sendo mínima e a revisão contratual é excepcional. O projeto aumenta a autonomia das partes, respeita a força obrigatória dos contratos e consolida normas já existentes de forma mais clara e técnica”.
AUTONOMIA DO DIREITO EMPRESARIAL
A autonomia do Direito Empresarial dentro do ordenamento jurídico brasileiro foi outro ponto abordado durante o encontro, na tarde de quinta-feira (11). O tema foi apresentado pelo advogado e professor do Departamento de Direito Comercial da PUC-SP Daniel Carnio, integrante da subcomissão responsável por revisar, no anteprojeto, o livro do Direito da Empresa.
Para Carnio, o grande desafio da comissão foi lidar com a inclusão do Direito Empresarial dentro do Código Civil, modelo adotado pelo legislador brasileiro desde 2002. “O fato do direito da empresa ser tratado no Código Civil não tem problema. O problema é o direito da empresa ser tratado como se fosse um direito civil entre particulares. As peculiaridades das relações empresariais exigem tratamento diferenciado”, enfatizou.
Daniel Carnio
Entre os principais avanços da reforma, Carnio ressaltou a inclusão de uma principiologia própria para o Direito Empresarial no artigo 966-A. “Se tivéssemos conseguido apenas isso, para mim já teria valido a pena”, disse. Ele explicou que o dispositivo deixa claro que contratos entre empresas devem ser analisados de forma distinta dos contratos civis comuns ou das relações de consumo, pois envolvem profissionais que assumem riscos conscientes.
Encerrando sua fala, o professor avaliou positivamente a reforma. “Nós temos hoje uma proposta de forma possível, especialmente no que diz respeito ao direito da empresa, muito adequada e meritória. Criamos um ambiente mais favorável à realização de negócios, que acaba sendo benéfico para a sociedade em geral”, concluiu
DIREITO DAS SUCESSÕES
O Direito das Sucessões foi o tema em destaque na segunda rodada de debates sobre a reforma do Código Civil (PL 4/2025), na sexta-feira (12), com a participação das professoras Giselda Hironaka (USP) e Fernanda Tartuce (Escola Paulista de Direito).
Fernanda Tartuce
Participando de forma virtual, a professora-doutora Fernanda Tartuce trouxe reflexões sobre os meios consensuais de solução de conflitos sucessórios. Doutora em Direito Civil pela USP, ela ressaltou a importância da mediação, da negociação e da conciliação como alternativas ao processo judicial clássico.
Segundo Fernanda, o consenso entre herdeiros permite inventários mais céleres, reduz a sobrecarga do Judiciário e contribui para soluções mais eficazes. “Às vezes, o que trava uma partilha não é o bem em si, mas ressentimentos antigos entre familiares. O espaço do diálogo estruturado permite tratar também dessas camadas ocultas do conflito”, afirmou.
A professora também destacou as mudanças propostas pela comissão de reforma, como a possibilidade de realizar inventários e partilhas em cartório mesmo nos casos em que existam herdeiros menores de idade ou incapazes, desde que com autorização judicial e concordância plena entre as partes. “Essa ampliação reforça a autonomia privada e abre caminho para uma justiça mais célere, moderna e acessível, em que o Estado atua como garantidor do processo e não como único condutor”, explicou.
HERANÇA DIGITAL
O encontro também contou com a palestra da professora-doutora Giselda Hironaka, referência nacional em Direito Civil, que abordou os principais desafios e inovações no Direito das Sucessões.
Logo no início, ela ressaltou a dimensão humana dos litígios hereditários, lembrando a frase atribuída a Oscar Wilde: “A herança é aquilo que os mortos deixam para os vivos para que eles se matem entre si”. Para a professora, embora nem todos os casos tenham esse desfecho, muitas disputas chegam ao Judiciário por questões mínimas, mas carregadas de forte carga emocional.
Giselda Hironaka
Entre os temas emergentes, destacou a herança digital, hoje marcada pela ausência de regras claras sobre uso de imagem, voz e dados de pessoas falecidas. “O Brasil pode ser pioneiro ao inserir no Código Civil um capítulo específico sobre Direito Civil Digital, regulamentando bens patrimoniais, personalíssimos e híbridos no ambiente virtual”, afirmou.
Outro ponto central foi a concorrência sucessória, criada pelo Código de 2002 e que gerou inúmeras controvérsias nos tribunais. “O artigo 1.829, ao prever a concorrência do cônjuge com descendentes, trouxe uma redação marcada por incertezas. O uso da palavra ‘salvo’ comprometeu a clareza do dispositivo”, criticou.
Segundo Giselda, a proposta em tramitação elimina a concorrência sucessória, após debates na subcomissão e na comissão geral. “Hoje, o texto em discussão prevê a exclusão dessa figura, em conjunto com outras medidas como a redução dos herdeiros necessários e o fortalecimento da autonomia privada”, explicou.
MEDIAÇÃO
Os debates foram mediados pelo desembargador Paulo Velten Pereira (TJMA), desembargadora Sônia Amaral (ESMAM), promotor Aarão Carlos Lima Castro, o procurador Marcelo Apolo Franklin e a professora Tereza Helena Barros (UEMA e UNDB).
O evento contou com intensa participação do público, composto por membros da magistratura e advocacia, estudantes de Direito e profissionais do Judiciário, que trouxeram questionamentos sobre os reflexos práticos das mudanças propostas, especialmente no campo das relações de consumo e nas demandas judiciais de massa.
LANÇAMENTO
Durante o evento, aconteceu o lançamento do livro “Construção de Consensos - um modelo eficiente de gestão adequada de litígios coletivos" , do juiz Rômulo Lago e Cruz, que trata sobre os limites dos mecanismos tradicionais de resolução de litígios frente aos desafios contemporâneos impostos pelos conflitos coletivos de alta complexidade.
Rômulo Lago e Cruz
A obra propõe o consensus building (construção de consensos) como um mecanismo extrajudicial para solucionar conflitos, permitindo que todas as partes envolvidas sejam ouvidas e cheguem a uma decisão compartilhada. Este mecanismo, desenvolvido por engenheiros e tecnólogos, oferece uma nova forma de gerenciar conflitos complexos.
Acesse o álbum completo do evento (com fotos da fotógrafa Josy Lord e Luís Marcelo)
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