A programação desta quarta-feira (12/11) do XVII Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), realizado em São Luís, teve como destaque o painel “Comunicação, Crimes Cibernéticos e Provas Digitais com Perspectiva de Gênero”. O evento, promovido pelo Fonavid em parceria com o Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), por meio da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cemulher/TJMA), e com apoio da Escola Superior da Magistratura do Maranhão (Esmam), reúne cerca de 300 participantes entre magistradas, magistrados, equipes técnicas e representantes da rede de proteção. Ao longo do dia, também foram debatidos temas como epistemologia da violência, masculinidades e o papel do Judiciário na educação em direitos humanos.
Sob a coordenação da juíza Elen Barbosa (TJRJ), o painel trouxe reflexões sobre os impactos da tecnologia na perpetuação da violência de gênero. A magistrada abriu os trabalhos destacando como o acesso irrestrito à internet e às redes sociais tem potencializado humilhações, chantagens e exposições indevidas, especialmente contra mulheres e meninas. A discussão reuniu especialistas como as juízas Eunice Prado (TJPE) e Adriana Barrea (TJSP), além da debatedora Érica Paes, que abordaram desde os desafios da investigação digital até as interseccionalidades que atravessam as vítimas.

A juíza Eunice Prado (no destaque da imagem acima) apresentou o emblemático caso de Rose Leonel, vítima da divulgação de imagens íntimas pelo ex-parceiro, que culminou na criação da Lei nº 13.772/2018 — conhecida como “Maria da Penha digital”. A magistrada destacou os impactos devastadores da violência online, comparando-os à tentativa de recolher plumas ao vento.
A primeira coisa que precisamos garantir é que a vítima continue viva. E isso começa com acolhimento psicológico e jurídico especializado”, afirmou Eunice, ao relatar a trajetória de superação da jornalista paranaense.
A juíza Adriana Barrea (TJSP), titular da 4ª Vara da comarca de Mogi Mirim, compartilhou iniciativas que vêm transformando o enfrentamento à violência doméstica na região. Segundo a magistrada, um terço dos crimes registrados na comarca está relacionado à violência doméstica e familiar, o que motivou a criação de estratégias específicas para atender às demandas locais. Entre 2021 e 2024, houve um aumento de 165,25% no deferimento de medidas protetivas, reflexo direto da articulação entre o Judiciário e a rede de proteção.

Juíza Adriana Barrea (TJSP), durante apresentação no Fonavid São Luís
Em dezembro de 2023, iniciamos um diálogo com todos os setores da justiça para formar um grupo de trabalho interinstitucional, com foco na padronização das decisões e na comunicação efetiva com a sociedade”, destacou.
Entre as ações implementadas, está a criação de um modelo de mandado de intimação com dois QR codes, que permitem às vítimas acessar rapidamente serviços de urgência, como a Patrulha Maria da Penha e o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM). A juíza também apresentou dados do mapeamento da violência doméstica em Mogi Mirim, que apontam um aumento de 39,58% nas medidas protetivas deferidas entre julho e dezembro de 2024, em comparação ao primeiro semestre de 2020.
INJUSTIÇA EPISTÊMICA
O painel “Injustiça Epistêmica”, presidido pela juíza Camila Guerin (TJRJ), trouxe reflexões sobre os mecanismos de exclusão na produção do conhecimento e na percepção da realidade. A professora Thula Pires, doutora e mestra em Direito Constitucional pela PUC-Rio, destacou como a centralidade cisgênero na construção do mundo afeta diretamente a capacidade de reconhecer outras existências, como as de pessoas trans e travestis. Para ela, é preciso questionar quem tem legitimidade para produzir saberes e como essa legitimidade é construída, não apenas nos espaços acadêmicos, mas também na vivência cotidiana.

Professora Thula Pires durante o painel Injustiça Epistêmica
Thula também provocou o público ao comparar a recepção da expressão “injustiça epistêmica”, cunhada pela filósofa inglesa Miranda Friker, com a invisibilização histórica do conceito de “epistemicídio” - a destruição sistemática de saberes, culturas e formas de conhecimento não reconhecidas ou valorizadas pelo modelo dominante ocidental - desenvolvido por Sueli Carneiro, uma das principais referências do feminismo negro no Brasil. Segundo a palestrante, a tese da brasileira sobre o dispositivo de racialidade enfrentou barreiras editoriais por anos, apesar de sua relevância.
A conversa sobre epistemicídio é mais direta, pois não exige a ginástica de contextualizar a expressão injustiça epistêmica de Miranda Fricker para a realidade brasileira”, afirmou.
A debatedora Maria Sylvia (imagem abaixo), advogada e diretora executiva de Geledés – Instituto da Mulher Negra, complementou a discussão ao abordar o descrédito sistemático das falas de mulheres negras no sistema de justiça. Ela apontou o racismo institucional como um dos principais obstáculos à escuta qualificada dessas mulheres, cujas experiências são frequentemente deslegitimadas. Para Sylvia, reconhecer a mulher negra como sujeito epistêmico é um passo fundamental para a efetivação dos direitos humanos e para a construção de uma justiça verdadeiramente inclusiva.

A advogada também destacou o papel da interseccionalidade na compreensão das múltiplas camadas de opressão que dificultam o acesso à justiça. Ao final, reforçou a importância do diálogo entre o sistema de justiça e os movimentos sociais, especialmente as organizações de mulheres negras, como forma de ampliar a escuta e transformar práticas institucionais.
VOZES QUE TRANSFORMAM
A escritora, professora e ativista Amara Moira compartilhou reflexões sobre as experiências de mulheres trans e travestis, marcadas por violência, invisibilidade e busca por reconhecimento. Doutora em teoria literária pela Unicamp, onde foi a primeira mulher trans a obter o título usando seu nome social, Amara abordou a complexidade das vivências de meninas trans, cuja afirmação de gênero muitas vezes ocorre por meio de experiências sexuais precoces, em contextos de abandono e solidão.

Escritora, professora e ativista Amara Moira no momento Vozes que Transformam
Ela também discutiu o papel das autobiografias como instrumento de denúncia e reconstrução de memória, citando obras como Eu Travesti, de Luísa Marilac, que relata episódios de estupro e a necessidade de encontrar prazer como forma de sobrevivência. Autoras como Lóris Adrion e Fernanda Farias de Albuquerque também foram mencionadas, reforçando que essas narrativas revelam um padrão estrutural de violência.
MANDADO QUE FALA
A juíza Bruna Greggio (imagem abaixo), auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), destacou a qualidade da programação. “Achei a programação do evento sensacional. Ela nos levou a refletir profundamente sobre os conceitos que temos, nossos eventuais vieses, e sobre como devemos analisar o relato das vítimas. Foi transformadora para repensarmos o tratamento que estamos oferecendo a elas e como podemos melhorar tanto em relação ao homem, suas masculinidades e vulnerabilidades, quanto à mulher e às vítimas trans”, afirmou.

A magistrada também aproveitou a participação no evento para apresentar a iniciativa “Mandado que Fala”, desenvolvida pelo TJPR. O projeto reformula os mandados de citação e intimação relacionados à Lei Maria da Penha, utilizando linguagem simples e recursos audiovisuais para facilitar a compreensão das medidas protetivas.
“O objetivo é que o jurisdicionado, seja vítima ou autor da violência, entenda claramente o que o juiz determinou. Isso evita o descumprimento involuntário da medida e também auxilia os servidores e oficiais de justiça, que não precisarão explicar repetidamente o conteúdo da decisão”, frisou.
Os novos modelos de mandado incluem QR Codes que direcionam a vídeos curtos e explicativos, elaborados com linguagem acessível. Ao todo, foram produzidos 13 vídeos que abordam as principais dúvidas sobre as medidas protetivas, promovendo maior efetividade na comunicação judicial e contribuindo para a proteção das vítimas de violência doméstica.
Confira a programação completa do Fonavid
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