Poder Judiciário/Mídias/Notícias

Artigo do Desembargador José Bernardo Silva Rodrigues

Publicado em 19 de Nov de 2018, 18h48. Atualizado em 19 de Nov de 2018, 18h48

Hora! Hora! Te enxerga.

Há tempo, muito tempo, desde criança ouvia a exclamação acima. Nada entendia. Georgino – Nhô e Ana Amélia, meus pais e de mais nove (9) filhos, seis meninos e quatro (4), meninas, trabalhavam de sol a sol para sustentar a família, mantendo todos na escola pública.

Da primeira infância a lembrança de uma casa coberta de palha, parede de taipa e piso de terra batida, em um local onde não havia luz elétrica, água encanada e sequer uma rua. Havia, para o acesso, um caminho.

Muito bem! Nada de extraordinário só por isto, visto que milhares de famílias sobreviviam desta forma, apesar deste local distar menos de 4 km do Centro Comercial e Administrativo da Cidade.

O extraordinário, diante de toda a adversidade, é que Georgino e Ana Amélia, de poucas letras, uniram-se para sempre em um compromisso que não permitia que as atrocidades daquele tempo nos atingissem. Daquele tempo? “O que é já fi e sempre será” - (Eclesiastes).

Mercê de tudo isto, forjaram personalidades e caráter sólidos nos filhos, posto que constituído no orgulho da dignidade, crescer e viver do suor do próprio rosto, merecendo o pão de cada dia. Por isto e muito mais, registro, com pesar, que ele nos deixou aos noventa e três (93) anos e, logo depois, ela, aos oitenta e oito (88), ressaltando que, na aposentadoria, foram tratados como filhos, em uma residência digna.

Oriundo da Escola Pública, especialmente do Liceu Maranhense, por obra e graça de Deus, logo ao ingressar na Faculdade de Direito, situada na Rua do Sol, defronte ao Teatro Arthur Azevedo, um dos seus anjos “apareceu” na Faculdade e convidou os alunos para um estágio na Secretaria de Administração do Estado do Maranhão. Nos animamos, mas logo um balde de água fria – sem remuneração. Contudo, refeitos do susto, aceitamos o convite. Nos submetemos a um treinamento e, orgulhosamente, lançamos mãos à obra.

E, sempre por Deus, decorridos mais ou menos dois (2) meses, veio a maravilhosa notícia: a primeira gratificação. O estágio sem remuneração transformou-se no primeiro emprego e estou empregado, até hoje.

Ah! Quase esqueço. Tive pai e mãe. Repito, tive pai e mãe na verdadeira acepção das palavras. Hoje, pai e avô, vejo com tristeza, a destruição das famílias, da falta de respeito entre pais e filhos. Alunos e professores em guerra.

Pois bem! Salto para a frente.

Depois de advogar por mais de dez anos, ingressei na Magistratura maranhense onde estou há mais de trinta e sete anos e, como Juiz fui Diretor do Fórum da Justiça Comum e Eleitoral e, nesta, também fui membro substituto e depois titular do Tribunal Regional.

Promovido por merecimento para o Tribunal de Justiça do Maranhão, fui o primeiro Ouvidor Geral e, eleito membro titular do TRE/MA, la fui Ouvidor, Vice-Presidente, Corregedor e Presidente – tudo sem cota.

Recentemente tomei conhecimento do 2º Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros – Brasília (DF). Não soube do primeiro.

Confesso que fiquei muito curioso, porque ousado e oportuno. Tenho minhas convicções: não quero direito igual a quem quer que seja. Quero respeito. Por isto me respeito e respeito o outro. Além disto, o foco no princípio da igualdade como colimado por muitos, parece beirar a inveja. O outro tem, porque eu não tenho?

Mas, que bela surpresa. Primeiro pelo encontro com a comunidade jurídica, não só magistrados; segundo porque o grau de maturidade no tratar o tema foi extraordinário. Nada de tolice. Problema conhecido a ser enfrentado.

Preconceito existe e sempre existirá. Como enfrentá-lo? O que está acontecendo para o baixo número de negros nas carreiras jurídicas?

Diante deste quadro, sinto a necessidade de mostrar o caminho percorrido e como logrei êxito na vida, apesar de todos os pesares.

Desde muito tempo, foquei na diferença e não na igualdade. Logo cedo percebi a diferença em todas as dimensões.

Encontro na literatura bíblica ensinamentos, para mim, irrefutáveis. Livros de verdadeira sabedoria, luz para o conhecimento de mim mesmo e do outro, da natureza e da vida.

O Eclesiastes também me ensinou “que tudo é vaidade”; “que tudo depende do tempo e das circunstâncias”; “que, nem sempre o melhor é o vencedor”. Estas coisas que levam a uma profunda reflexão. O que estou fazendo aqui? Qual a minha finalidade na vida?

E, novamente o Eclesiastes me diz: “a única coisa que interessa é comer, beber e fazer o bem enquanto há vida”, pois tudo aqui na terra é vaidade.
Então, porque padecer buscando igualdade?

Caminhando no tempo encontro a parábola dos talentos, ensinando que “há um talento para um, dois para outro e três para outros”.
Não posso deixar de ver as diferenças, posto que na mesma atividade uns são melhores que outros.

Vejamos no futebol, também minha praia. Lá Pelé foi Pelé, e os outros, simplesmente os outros. Porque então tenho que sofrer buscando igualdade? Por que não busco a mim mesmo na liberdade do escolher consciente?

E, novamente encontro outro Livro Bíblico – Coríntios – que nos mostra os Dons. Cada um tem o seu – diferenças, não descuidando de que, aquele que não desenvolve o seu talento perder-lo-á.

Assim eu passo à Carta Magna/1988 – Art. 1º; inc. II – Cidadania; inc III – Dignidade da pessoa humana. Vejamos então, cidadania invoca cumprimento de deveres, posta topograficamente antes da dignidade da pessoa humana – direitos.

Mais ainda, o art. 5º da Constituição Federal, não diz “todos são iguais” - ponto. Diz, “perante a lei”, estabelecendo de pronto a diferença. Simples assim, seja preto, branco ou quem quer que seja, pois vivemos em um Estado Democrático de Direito, o que implica em responsabilidades pessoais e, cumprindo deveres, nos habilitamos à exigibilidade de nossos direitos.

Dito isto, tenho que parece necessário calibrar o foco do princípio da igualdade. Conhecer-se, conhecer o outro, a realidade, a vida, nos situarmos. Pois a mesa da vida está posta diante de nós (Salmo 22), e nela há tudo, mas precisamos conhecer o que está posto na mesa. Vivemos no reino da Terra, onde o mal existe (Salmo 90).

Há necessidade de cuidados com a nossa força física – cuidar do corpo; da força intelectual – cuidar da qualidade profissional; da força emocional – não ser melindroso e, especialmente, da força espiritual – iluminação do corpo e da vida.

A consciência de que cada um é único na vida, nos leva pelos caminhos da felicidade.

Hora! Hora! Vamos nos enxergar.

José Bernardo Silva Rodrigues - Negro
Desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão
Membro da Academia Barracordense de Letras