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RELATOS| Servidoras falam da conquista de espaços contra o preconceito

Esta é a quinta matéria da sequência especial de entrevistas em alusão ao Dia da Mulher Negra (25 de julho)

30/07/2020
Danielle Limeira

Uma analista de Serviço Social, uma analista de Direito, uma comissária da infância e juventude e uma analista de Contabilidade. São quatro funções distintas e de extrema responsabilidade e importância no âmbito da Justiça, executadas por quatro mulheres negras, que contam como venceram os obstáculos do preconceito racial e ganharam espaço e voz em meio a luta pela igualdade de direitos e oportunidades.

Dar publicidade, espaço e visibilidade a estas histórias é uma iniciativa do Comitê Estadual de Diversidade do Tribunal de Justiça do Maranhão – instalado pelo presidente da Corte de Justiça, desembargador Lourival Serejo – em parceria com a Assessoria de Comunicação do TJMA. O comitê é coordenado pelo juiz Marco Adriano.

Ana Sheila Muniz

A analista judiciária em Serviço Social na Comarca de Balsas, Ana Sheila Muniz, entende que o machismo e o preconceito são frutos das desigualdades sociais e manifestação das relações de poder postos ao longo da trajetória da humanidade. Ela considera que as suas vivências são oportunidades que propiciam o rompimento deste ciclo.

“Sou uma mulher negra, oriunda de uma família negra e meus ascendentes não tiveram um acesso facilitado à educação, assim como a maioria da população negra do país. Porém, meus pais me incentivaram na consecução dos meus objetivos”, revela.

Ela compreende que sua inserção no Poder Judiciário é um acontecimento de grande relevância, tanto em sua vida pessoal, como na profissional. “É o resultado do meu esforço pessoal, apoio familiar e oportunidades que tive, frente às dificuldades enfrentadas em uma sociedade desigual e injusta, considerando a escassez de oportunidades, tanto no acesso à educação de qualidade, quanto à inserção do negro no mercado de trabalho”, frisa.

Ana Sheila Muniz diz se sentir grata por ter superado obstáculos, por poder ser uma referência e motivar outras mulheres negras de que “podemos e somos o que quisermos ser”. Contudo, pondera que também tem a consciência de que o acesso e a permanência no espaço do Judiciário é parte de uma história coletiva de enfrentamento ao racismo estrutural.

“Em uma sociedade que define e limita nossos espaços, muito além da inserção no Judiciário, é preciso fortalecer os mecanismos de permanência, pois, lamentavelmente ainda causa 'estranheza' para alguns ver a mulher negra ocupar determinados espaços”, ressalta, afirmando que é preciso demonstrar a todo momento a capacidade da mulher negra e quebrar o estigma de inferiorização.

A servidora orienta que o alcance de objetivos e metas de vida, como mulher negra, é uma caminhada que não se traça sozinho, mas em conjunto com outros cidadãos que buscam a garantia de seus direitos, o enfrentamento e a eliminação do racismo estrutural. 

Sobre as mulheres que a inspiram e que são exemplos de representatividade, Ana Sheila Muniz cita a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, a quem considera exemplo de força e resistência. Ela menciona a amiga Elisângela Cardoso (in memoriam), que foi militante e atuante no sistema socioeducativo maranhense e sua amiga Milena de Cássia Campos, que foi parceira na jornada acadêmica na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e se tornou uma grande companheira na luta pelo reconhecimento de direitos. 

Denise dos Santos Pinheiro

Para a analista judiciária de Direito da Comarca de São Luís, Denise Pinheiro, como toda mulher negra, ela diz que já vivenciou o peso da dupla opressão (gênero e raça) em vários momentos da vida pessoal, acadêmica e profissional. “Contudo, antes de compreender como o patriarcado e o racismo se estruturam em nossa sociedade, recebia com naturalidade ações preconceituosas e discriminatórias que se reproduzem no cotidiano laboral e sempre pretendem nos desqualificar de diferentes formas”, diz.

Denise Pinheiro via com normalidade o reduzido número de negros nos espaços em que circulava –  como na universidade pública e nos órgãos do Poder Judiciário – o que ela explica ser fruto do passado colonial e escravocrata do país. “Lograr êxito em qualquer competição gera um sentimento de alegria, isso é indiscutível. Por outro lado, sabemos que os concursos públicos são o reflexo da meritocracia, sistema que apenas reproduz as desigualdades raciais e sociais”, ressalta.

A analista judiciária analisa que o mundo do Direito é sexista. “As carreiras jurídicas são tradicionalmente exercidas por homens brancos. As mulheres sempre precisaram batalhar pela igualdade e pelo reconhecimento de seu trabalho, e as mulheres negras têm essa luta duplicada”, constata.

Denise Pinheiro explica que apesar dos negros representarem 74% da população maranhense, segundo dados do IBGE, as instituições são dominadas por brancos e homens e tomadas por regras e padrões que dificultam a ascensão de negros e de mulheres. “Portanto, ocupar um cargo público no TJMA não representa apenas uma conquista pessoal, mas o sinal de que o Estado deve modificar sua atuação, e uma das formas de fazer isso é através da discriminação positiva, atribuindo vantagens a membros de grupos sociais históricamente discriminados”, frisa.

Ela afirma que a mulher negra precisa “assumir suas origens, orgulhar-se delas, estar preparada para qualquer atitude que, intencionalmente ou não, tente te diminuir como pessoa ou que coloque em dúvida sua capacidade profissional”. Dessa forma, ela explica que a mulher negra não precisa se enquadrar nos padrões eurocêntricos que a sociedade brasileira insiste em adotar como um ideal de realização e aceitação. “É preciso fazer com que as pessoas compreendam que o espaço de trabalho deve estar isento de práticas discriminatórias e racistas”, enfatiza.

Para Denise Pinheiro é preciso conhecer a história de luta e opressão das mulheres negras e entender que as mulheres não representam uma categoria universal. “Desde o início nossas reivindicações feministas não eram as mesmas. Enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito de trabalhar, as mulheres negras eram escravizadas. Como afirmava a antropóloga Lélia Gonzales, a mulher negra é o centro das desigualdades sociais e sexuais existentes na sociedade. Portanto, que nunca silenciem e não permitam ser mantidas na invisibilidade”.

Ela conclui revelando suas inspirações e referências que são as escritoras negras, feministas e antirracistas como Angela Davis, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro e todas intelectuais que a ajudam a entender a importância de debater o racismo e a interseccionalidade de gênero.

Digelda Costa Sousa

Digelda Costa Sousa – que atua como comissária da infância e juventude na Comarca de Imperatriz – considera a oportunidade da atividade que exerce uma grande vitória que Deus a proporcionou. “Nasci em uma família negra e pobre. A primeira vez que sofri preconceito e entendi que estava sendo vítima de preconceito foi de um professor no ensino médio. Eu chorei bastante neste dia, mas também foi um evento, que se tornou mola propulsora para continuar a sonhar e mostrar a todos que eu conseguiria”, conta.

Sobre ser aprovada e nomeada em um concurso público altamente concorrido, ela revela que o estudo e apoio de amigos foram responsáveis pelo êxito que logrou. “Tive bastante apoio dos amigos, em especial de uma amiga Juliana, que já era servidora. Sendo mulher e negra, e acrescente-se pobre, a aprovação teve um significado ainda maior na minha trajetória”, afirma.

Digelda Sousa acredita que para a mulher negra é sempre mais difícil conquistar os objetivos por causa do preconceito e, muitas vezes, pela condição socioeconômica, mas a superação também é possível. “Sabemos que o preconceito contra a mulher negra existe, ele é real. Acredito que sempre tratar todos com gentileza e educação é a chave de tudo, porque mesmo que você sofra na rotina do trabalho preconceito você continuará grande e o sujeito que praticou a conduta se reduzirá na sua pequenez”, destaca.

Ela aconselha as mulheres negras da sociedade maranhense e do Brasil que nunca desistam. “Vai ser difícil, você vai chorar muitas vezes. Vai ter momentos de desespero, de tristeza de solidão. Mas, saiba que compensará. Para superar os desafios é preciso sempre agir com amor pelo que faz. Agindo com amor tudo fluirá naturalmente”, orienta, concluindo que a sua grande referência de mulher negra e base é a sua mãe, que é a pessoa que mais a apoiou. 

Célia Regina Pereira da Silva

Célia Regina da Silva cumpre sua função de analista judiciária contadora na Coordenadoria de Contabilidade do TJMA. Ela conta que a sua carreira no Tribunal de Justiça foi o início de uma grande virada profissional. “Antes de entrar no Tribunal já era servidora pública, vinha de uma carreira predominantemente masculina, onde se impor como mulher era fator preponderante para obter o devido respeito, era Policial Militar, cargo de soldado, com atuações operacionais e administrativas”, diz.

Para  Célia Regina, é uma conquista importante conseguir exercer a profissão a qual escolheu, fechando um ciclo de cinco anos na Polícia Militar do Maranhão e dar início a uma carreira no Judiciário, onde teve seu trabalho reconhecido. “No Judiciário Maranhense tive várias indicações para o exercício de cargos de confiança, proporcionando muitas realizações profissionais e a concretização de muitos sonhos”, revela.

A contadora diz que exercer sua profissão no Poder Judiciário representa um sentimento de superação, por ter vencido uma grande concorrência para o provimento de apenas duas vagas para o cargo de Contador. “Superação por ser mulher, onde as oportunidades são escassas e principalmente por ser negra, onde a discriminação e preconceitos são fatores de barreiras para o mercado de trabalho”, enfatiza.

Para a analista em contabilidade, “ter mulheres em cargos de destaque gera um sentimento de pertencimento e incentiva a outras mulheres pelo exemplo a correrem atrás dos seus sonhos, e o fato de ser negra traz mais representatividade ainda, pois somos minoria num espaço onde predomina pessoas brancas”.

E conclui dizendo que a educação é a chave para abrir as portas e conquistar os espaços na sociedade. “O esforço exigido para mulheres negras será muito maior pois temos que tirar um atraso histórico pelo qual o povo negro sempre enfrentou em nosso país, mas apesar das adversidades, é possível sim realizar grandes conquistas”, finaliza.
 

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